quarta-feira, 20 de abril de 2016

Crônica (19) - Luna.

Eu não sei o que foi isso??? Mas eu abri o blog e comecei a escrever e quando vi tinha isso aí. Eu espero que vocês gostem, usei a segunda pessoa e tentei manter pronome neutro pra vocês poderem se encaixar se quiserem, seja como a primeira ou a segunda personagem.





 

A gente se conheceu no Estranho.

Era uma lojinha de esquina que vendia artesanato e cheirava a incenso, e você só saberia chegar lá por indicação. Eu trabalhei lá dois anos atrás, logo quando me mudei para a cidade grande, mas coincidir faculdade e estágio junto a lojinha onde trabalhava mais por comodidade do que para juntar dinheiro acabou se tornando difícil e eu pedi demissão. Por ironia do destino, foi você quem assumiu meu lugar como caixa e a única coisa viva que aquela loja via diariamente.

Naquele dia em especial estava chovendo. Seu humor, já tempestuoso naturalmente, trovejava para combinar com a chuva. Mais tarde eu fui descobrir que você gostava de combinar com o clima, e tinha um ódio atípico à dias chuvosos.
Peculiar, eu brinquei, quando na verdade queria dizer que você era a pessoa mais estranha que eu já vira, e que eu meio que te amava mesmo assim. Mas isso só aconteceu uns seis meses depois. Antes disso, a gente precisou que estivesse trovejando muito e que eu estivesse por perto para optar por fazer hora lá dentro.

Você estava atendendo um cliente, o piercing no septo, cabelo cheio e a voz rude não combinavam em nada com a forma atrapalhada com que você tentava entender o pedido da senhora. Ela usava roupas coloridas, e tinha aquele olhar de exótico que combinava mais com a loja que nós duas juntas. Se dividíssemos em pares, ela terminaria com o Estranho e eu com você. Já havia sido premeditado, viu?

A moça, no final das contas, estava procurando por ervas que eu sabia que encontraria na prateleira do topo, no canto esquerdo da loja, onde um buda ajudava a equilibrar um quadro de Jesus Cristo. Meu primeiro pensamento, no entanto, foi me aproximar do aquecedor ao lado da porta e tentar recuperar um pouco do calor que havia perdido nesse temporal lá fora. Você coçava a cabeça, perguntando se a moça poderia repetir, e quando finalmente consegui sentir os dedos dos meus pés de novo, passei a prestar atenção em você.

Usava calça apertada, tênis sem cadarço, camiseta estampada e por cima o avental verde, uniforme da loja. Eu era a típica universitária; um moletom aleatório tirado do fundo do armário, cabelo preso num rabo bagunçado por motivos de pressa, bolsas roxas enormes debaixo dos olhos, All Star colorido e calça jeans coberta por pequenos desenhos de Bic pelas coxas. Você disse que soube na hora que eu era de humanas. Me senti ofendida.

Você olhou para mim por um momento, eu devolvi o olhar. Com o rosto corado, você murmurou que iria checar no estoque e subiu na escada; eu sabia que tudo o que tinha lá em cima eram montes de tecido empoeirado, três Atlas enormes, uma maquininha de café e um sofá que veio a calhar para as tardes futuras onde eu tinha que estudar e a gente tentava ficar junto, conciliando escola, faculdade e beijos preguiçosos em cima daquele sofá velho.

Não querendo ser inconveniente, e não sabendo como você iria levar isso, andei rapidamente até as estantes mais altas, peguei os incensos que a mulher procurava e caminhei até ela, chamando sua atenção, lhe entregando e voltando para meu lugar antes que você voltasse de lá de cima. Seu olhar era de puro desespero, mas ela, por sua vez, lhe ergueu as caixinhas, perguntou quanto custava e murmurou que já devia ser hora de trocar seu turno.

Você não entendeu nada.

Eu ri baixinho, chamando sua atenção. Você me olhou com curiosidade, e eu dei um sorriso ladino, colocando as mãos no bolso do moletom enquanto olhava lá fora e via a chuva só aumentar.

No final das contas, a mulher pagou e saiu, e você foi até o caixa, ainda olhando para mim sem saber se podia fazê-lo ou não. A gente ficou numa brincadeira de troca de olhares, em dúvida do que fazer, até que você veio até mim. Ainda sem saber o que fazer, você usou a desculpa de que iria aumentar o aquecedor, mas eu e você sabíamos que já estava em seu máximo.

Por fim, você me olhou, perguntando o que eu queria.

Eu sempre digo que não tenho muita vergonha (já você me chamava de atirada), e no final acabei dizendo Seu nome sem a menor alteração no rosto. Exceto pelo sorriso sacana, esse eu fiz questão de dar. De duas uma, ou você iria me desiludir rápido, ou responderia. E se o fizesse, poderia ser tanto por educação, quanto por interesse.

De coração, eu esperava que fosse a última das últimas opções.

E acabou sendo. Você me respondeu, no final, o nome e perguntou se eu queria mais alguma coisa. Sem a menor mudança no rosto. Nenhum vermelho tingido, vergonha ou nojo. Eu senti aquela faísca acendendo no peito e todo meu sistema entrando em modo de alerta, porque o sorriso que você me deu em seguida foi tão sacana quanto o meu. Outra pessoa teria vacilado, mas a gente só durou todo esse tempo porque eu sou eu. Se isso fizer sentido.

Respondi alguma coisa, e você outra, e a gente ficou nessa até que você fechou a loja (e me fez jurar que não contaria para ninguém), subiu comigo e a gente ficou falando nada enquanto você fingia que sabia mexer na máquina de café. No final das contas, eu acabei desistindo do papel de alheia a seu fracasso e, com um toque de quadril e experiência, pressionando os dois botões e colocando os copinhos em baixo, fiz dois cafés enquanto você me olhava curiosa.

Foi assim que você ficou sabendo que eu trabalhei aqui. E que poderia voltar quantas vezes mais eu quisesse. Inclusive, foi o que eu acabei fazendo. Às vezes, duas vezes por dia, só pra te ver e a gente ficar nesse flerte infinito até que um amigo seu, que depois descobri saber até meu endereço (me pergunto quem contou, hm) me parou um dia na porta da Universidade e perguntou quando essa tensão sexual toda ia ser resolvida. A minha cara, claro, foi uma das melhores, e eu deixei de te mandar uma mensagem (já mencionei que havíamos trocado o número por essa época?) para, educadamente, lhe perguntar; perdão?

Como o melhor wingman da cidade, o Daniel revirou os olhos - afetado -, inclinou o quadril para o lado e disse. No final do dia, a gente acabou junto na sua cama comigo tentando saber como sairia sem que seus pais descobrissem. Eu acho que em algum momento sua mãe percebeu que aquela cama estava cheia demais, mesmo com você me cobrindo com todos os seus oito braços durante a noite, quando veio te dar boa noite, mas ela é uma senhora boa demais e a gente não presta. Então.

Acabou que nos dias seguintes isso se repetiu. Eu acordava na sua casa, as costas doendo como o inferno, você me fazia uma massagem rápida e cheia de mãos, descia para tomar café e me trazer escondido um pedaço de pão e nescau e a gente esperava até que seus pais saíssem para que nós pudéssemos ir. De tarde, depois da faculdade, eu ia até o Estranho e a gente fingia que não tinha que fazer nada, subia para a salinha de cima e ficava trocando beijos com gosto de café amargo. Depois a gente voltava andando até sua casa e parava em qualquer lugar para fazer qualquer coisa que quebrasse essa rotina que começava a se estabelecer. No fundo, estávamos com medo de se acostumar com uma rotina e um dia acordar e perceber que ela não existia mais.

Pelo segundo mês, quando você finalmente tomou coragem para perguntar se a gente era algo ou não, sua mãe já sabia minha história de vida e seu pai me dava carona até a faculdade porque era caminho para ele. Você fez todo um jantar e mandou seus pais visitarem sua irmã mais velha aquela noite, dando para mim a desculpa de que tinha que estudar e que era melhor que eu só viesse mais tarde. Eu, tola, acreditei. E quando cheguei na sua casa, você tinha preparado fondue e roubado vinho da dispensa do seu pai, me fazendo prometer que não ia contar para ele. ("Honestamente," você me disse aquela noite "Eu só fiz o fondue porque é mais fácil derreter queijo e cortar pão do que bater a cabeça com alguma coisa mais caprichada que eu com certeza vou queimar." E eu ri, aproveitando que você colocara um morango na boca para te dar um beijo e roubar para mim. Nojento.) Foi no final da noite, quando seus pais tinham aparecido e fingido não notar a garrafa de vinho quase vazia do nosso lado no chão da sala, depois de ter arrumado tudo em seu devido lugar e trocado o milésimo beijo na noite, foi que você perguntou. Suas mãos tremiam e eu tentava ignorar você limpando o suor na minha calça (isso é chamado de amor, sabia?), e você gaguejou tudo de uma vez. O problema é que você sabe quem eu sou e eu, a sonsa, fingi não ter entendido só pra te fazer repetir tudo de novo. Você quase me dava um tapa, mas acabou me beijando quando eu disse sim.

("Sim o quê?" // "Sim ué." // "Mas eu não te perguntei nada." // "Então sou eu que estou me pedindo em namoro?")

No final do quinto mês, a gente teve nossa primeira briga. A gente sempre se provocava e eu morria de medo que, de pirraça, eu acabasse te irritando ao limite e você explodisse. Como disse antes, seu humor sempre foi... complexo. Mas não foi por nenhuma daquelas briguinhas bestas que a gente tinha durante o dia, e sim porque você precisava estudar para as provas finais e eu sou (suas palavras) uma vadia carente que não sabe usar os dedos por um dia. E no final da quarta ligação perdida, você me atendeu, me mandou tomar no cu, e eu passei o dia seguinte sem falar com você.

A gente se resolveu uma semana depois. Estávamos péssimxs, as bolsas embaixo dos olhos que haviam começado a desaparecer uma vez que eu passei a te encontrar estavam de volta em seu ponto alto, e você tinha o rosto inchados e havia tirado o piercing pela primeira vez. ("Não dava para ficar limpando o catarro dele toda vez que eu terminava de chorar.", você me contou e eu ri de nojo.) A gente terminou aquela noite na minha cama, numa das raras vezes que íamos para o complexo de dormitórios que a universidade disponibilizava para estudantes e que eu costumava chamar de casa, e ficamos conversando com pernas entrelaçadas, bocas coladas e o medo de que a gente voltasse a se separar de novo se não grudasse desse jeito.

Eu costumo dizer que a gente faz um casal bem bonito. Talvez seja só minha modéstia - eu gosto mesmo de me vangloriar pelas coisas que tenho. A exemplo é esse anel no meu dedo. Vivo esfregando na cara de todo mundo lá do trabalho.

Seus pais acham que está muito cedo, mas com você entrando na faculdade de engenharia e eu terminando minha licenciatura em história, a gente começou a procurar um flat para morar, e de repente veio o gato, Félix, quem você diz que vai roubar seu lugar como minha pessoa favorita no mundo (náh... talvez), e então a gente começou a falar de filho e percebeu que no meio disso tudo faltava uma coisinha bem pequena.

Hoje você tem mais um piercing na boca, eu tô com o cabelo descolorido e a gente tá junto há sete anos, procurando por uma casa depois de casar mês passado e ter esperado pra fazer lua de mel no fim do ano. Você ainda tá se adaptando a vida na universidade, eu consegui um emprego como professora de fundamental, e a gente não tem muita certeza do futuro, mas depois de um tempinho, já não dá pra correr pra longe dessa tal rotina que a gente chama de amor.

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