domingo, 4 de fevereiro de 2018

Crônica (23) - Luna.

Oi, gente, tudo bem com vocês?! Primeiro post real do ano! Isso daqui é uma crônica, fazia muito tempo que eu não escrevia uma, então resolvi estrear com uma.



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Ela se escorava no parapeito da janela quando te viu pela primeira vez. Você tinha olhos muito grandes e armações de óculos maiores ainda, andava de um jeito meio desengonçado, como se precisasse dar impulso com os braços para que seus pés saíssem do lugar, e uma risada escapou da boca dela, esticando o batom vermelho, quando te viu tropeçar no vento. Você olhou para o lado. O errado. E não a viu.
Na segunda vez que vocês se encontraram, ela usava uma saia plissada e um batom cor de céu, escuro. Você abaixou-se para dar laço nos sapatos, e foi assim que a conheceu: de baixo para cima. Sapatilha de fita, saia cor de chumbo. Uma blusa qualquer, fina. E o batom cor de céu. Não há nada de romântico na forma com que você encarou a boca dela, meio intrigado, essencialmente porque todo mundo que a via fazia o mesmo. Você a viu passar, deixando com a boca que o ar entrasse, voltando a amarrar os sapatos. Ela seguiu seu caminho, e não te viu.
Vocês foram para o cinema. E para um festival. Mas não se encontraram. Você levou outra pessoa para assistir qualquer filme, e ela foi com uns amigos e gritou todos os sucessos de uma banda indie que fingiu conhecer. Vocês compraram pipoca na mão do mesmo atendente, e ela sorriu com a boca roxo-escuro enquanto esperava pelo troco, enquanto você se atrapalhou com o dinheiro e deixou mais do que devia no balcão.
Vocês se bateram uma vez num parque temático. Você nunca ia em parque, então se estava indo daquela vez, era necessário que alguma coisa acontecesse. Você corria atrás do irmão mais novo, cinco anos de diferença, a razão pela qual você achava que estava lá; ela passeava com as amigas, lábios cor de sol nunca deixando de sorrir, quando um garoto de cinco anos e meio de diferença passou voando ao seu lado, deixando para trás uma risada gostosa de se ouvir. Você apareceu logo atrás, e com os dois pés esquerdos, conseguiu driblar apenas as duas amigas, esbarrando nela como num clichê de verdade merece acontecer. O menininho continuava a correr pelas pessoas, gargalhadas entregando sua posição, e você lançou um olhar breve para o fim de sua inércia, notando a boca colorida que sorriu, dizendo-lhe para não se preocupar quando logo em seguida você pediu desculpas.
Ela saiu da escola e entrou na faculdade de Ciências Contábeis. Você fazia licenciatura em Matemática. Ela quase perdeu o primeiro semestre, e algum colega que era conhecido de um amigo seu lhe indicou para que ela lhe pedisse ajuda em cálculo.
Vocês se encontraram na biblioteca, e ela parou meio curiosa quando te viu, a memória não fazendo um bom trabalho em reconhecer seu rosto, mas o corpo reagindo em instantes a sua presença. A boca dela estava sem batom. Você não a reconheceu. Ela riu quando você se atrapalhou com a cadeira, e te ouviu explicar, atentamente, função de segunda grau e Bhaskara.
Vocês se encontraram mais 3 vezes, e quando ela passou na final, perguntou se você queria sair pra comemorar. Ela usou um vestido preto e na boca vermelho rubro. Alguma coisa brincou com sua memória. Ela te confessou meio bêbada que nunca gostou de exatas, e depois que perguntou, te disse que o sonho dela sempre foi cursar cinema.
No semestre seguinte, ela te ligou dizendo que estava encontrando dificuldade numa matéria que, mais tarde, te contou que ela nem havia começado. Antes disso, você ofereceu para que se encontrassem na biblioteca de novo. No final de tudo, tiveram que estudar entre seus turnos como atendente numa loja de cosméticos.
Com seu primeiro salário, você comprou para ela um batom cor de céu. Ela apareceu usando ele junto com uma saia plissada cor de chumbo, e sua memória finalmente fez o próprio trabalho. Você não disse nada, e ela sorriu o encontro inteiro. No final da noite, você borrava a própria boca com o anil da boca dela.
Vocês ficaram sem se ver por um mês inteiro, e com o fim do trigésimo dia, você mandou uma mensagem perguntando se ela já não precisava mais de ajuda com as matérias. Ela sorriu para si mesma, e passou um batom cor de terra quando vocês viram no cinema um filme qualquer. Você se atrapalhou com o dinheiro para comprar pipoca; ela ria enquanto esperava pelo troco, manchando sua bochecha com o beijo que deixou ali.
Vocês não viram nada do filme. No final de tudo, saíram da sessão com a mesma cor de batom na boca.
(Vocês foram ao parque, e ela conheceu seu irmão. Eles riram, e algo como reconhecimento brincou nos olhos dela. Ela te levou ao festival, e vocês fingiram conhecer os maiores sucessos de uma banda indie que só ouviram uma vez.)
(Ela não usava batom nenhum quando trocou o curso, mas vocês duas colocaram rosa na boca no dia em que, dois anos depois, você deu sua primeira aula.)

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